Lixo, lixões no BR não são domésticos, e SIM desUMANOS; está no sangue, no cérebro. A cearense Lúcia Fernandes do Nascimento é uma entre milhões de brasileiros que não tiveram infância. A vida era dura em Reriutaba, interior do Estado, onde ela nasceu e de onde saiu aos 10 anos, com os pais e 13 irmãos, para ir morar em Brasília.
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O trabalho duro a ajudou a forjar sua identidade. Mas sua essência natural, de cearense típica, já estava presente na fala direta, expansiva e na personalidade forte. Começou a trabalhar uma semana após ter chegado ao Planalto Central. Aos 10 anos, em uma casa de família. Ironicamente, tinha de cuidar dos filhos dos patrões. Justamente ela, uma criança.
Lúcia hoje preside cooperativa
Lúcia hoje preside cooperativa
Acervo pessoal
Não foram poucas as vezes que disfarçou e, junto com os pequenos, aproveitou para brincar, fazendo dos brinquedos emprestados uma ponte para seus sonhos, estes sim, só dela. Deixou essa atividade aos 18 anos, após se casar e ter trabalhado um tempo no campo com o marido.
Mas, meses depois, ambos, já com filhos, resolveram arriscar e foram trabalhar no lixão da Estrutural, em Brasília, então o segundo maior do mundo. Foram com a esperança de que lá poderiam ganhar o suficiente para sobreviver.
Só que, com o tempo, ela foi conhecendo os perigos daquela profissão sem regulamentação. Muitas vezes trabalhavam 12, 14 horas, a céu aberto, respirando o ar insalubre, sem banheiro ou refeitório, correndo o risco de contrair doenças como leptospirose e dengue.
Ou de morrer em algum acidente, como ela viu acontecer com sua amiga, Glaice, com quem trabalhava até altas horas da noite.
“Comecei a trabalhar no lixão sem saber muito dos perigos. De repente fui me dando conta. A lembrança mais forte foi no dia que perdi minha amiga Glaice. Trabalhávamos juntas, conversávamos, dividíamos sonhos e frustrações. Ela morreu no chão da Estrutural, depois que uma carreta tombou em cima dela. Em outra ocasião, um rapaz chegou de madrugada numa carreta e morreu porque foi prensado em uma balança. Era triste. Depois que minha amiga morreu, nos colocaram numa ala sem equipamentos, separada. Mas já havia decidido que sairia do lixão, precisava de uma oportunidade para isso”, conta.
Única alternativa
Lúcia tem 44 anos, 18 deles vividos como catadora de lixo. Ela simboliza muitos brasileiros que, diante do desemprego nas grandes cidades, somado a uma nova etapa na industrialização e às demandas ambientais, ingressaram na atividade em busca da sobrevivência.
Pequenas cidades ainda encontram dificuldades para se livrar dos lixões
Pequenas cidades ainda encontram dificuldades para se livrar dos lixões
Acervo pessoal/Lúcia Fernandes do Nascimento
Naquele final dos anos 90, os lixões ainda eram a principal alternativa para descarte de uma imensidão de materiais que surgiram com a evolução tecnológica e que, após deixarem seus consumidores extasiados, tornavam-se, como bagaços, incômodos e sem destino certo.
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Este setor de resíduos sólidos, dentro do saneamento, é outra mostra de como a modernização precisa ser acompanhada de planos para suas consequências.
Inserida neste contexto, Lúcia, então, ao lado de tantos companheiros em situação semelhante, escalava aqueles locais insalubres e subia a montanha de sujeira em busca do Olimpo de sua sobrevivência. Ficava quase o dia inteiro lá, atrás de material reciclável.
Na companhia de urubus, sempre atentos caso surgisse algum cadáver. Sem outra alternativa, porém, ela prosseguiu, se arriscando e sonhando que aquele trabalho fosse um dia regulamentado.
“Entrei no lixão por necessidade, depois fui vendo a luta de cada catador e catadora, vendo colegas serem mortos, neste local, mal estruturado. Passei a lutar. Tínhamos de trabalhar com equipamentos perigosos, cortantes, ao lado de urubus, de todo tipo de animal”, conta.
O fim da Estrutural.
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